Uma história de Lisboa
-"Está frio."
-"Então?"
-"Vê se empurras isto mais devagar... parece uma mota... vou ficar com os óculos congelados".
No verão seria, empurra com mais força, para sentir a brisa na cara. Era assim que Nuno e António iam, ano após ano, todos os fins de semana para o Bairro Alto. Era assim antes, era assim agora. Escolhiam sempre o caminho mais difícil. Saíam do Rossio, em direcção ao Carmo. Paravam no fundo da descida e esperavam que alguém os visse, e ajudásse a subir a rua. Enquanto esperavam, miravam a antiga rota, pelas escadinhas do Duque, lembravam histórias que tinham passado.
-"Cada vez passam aqui menos pessoas..."
-"São os carros... já ninguém anda a pé por Lisboa... fazem filas enormes à porta de Parques que dizem "Completo"... não é das coisas que faz mais sentido..."
- "Vai lá ao café..."
Ultimamente têm sido sempre os homens do café ao pé que os têm ajudado. Velhos alcoolizados, estereótipo do sacana lisboeta, agora envelhecido. Quando no Largo do Carmo agradecem aos velhos e seguem para o Largo Camões, enquanto as tosses dos seus ajudantes ecoam pelo Carmo. Descem sempre pela rua do Heroís... Curiosidade macabra dizem um para o outro. Na brasileira vislubram sempre alguma cara conhecida que os acompanha nessa noite.
A noite vai correndo, de bar em bar, se for dia de semana, passam sempre pela Tasca do Xico, no fim de semana acabam sempre por passar pelo Arroz Doce e pelo Catacumbas... Vão sempre ver as novidades, mas acabam sempre por passar nesses pontos... A noite acaba sempre no Adamastor, vendo Lisboa, contando histórias, rindo... Normalmente Nuno já está bêbado a meio da noite, um processo que continua pela noite fora.
Nuno era completamente diferente. Sempre foi o melhor aluno, o mais responsável, uma namorada que o adorava, uma vida para construir em alicerces já fortes. António não... era irresponsável, brigão, experimentava tudo o que a vida oferecia, mau aluno... Mas sempre inseparáveis. Os professores de Nuno supreendiam-se com essa amizade tão estranha. Duas pessoas tão diferentes, mas com laços de lealdade tão fortes.
Tudo mudou depois do acidente. Nuno deixou de dar valor a tudo o que tinha. Nada fazia sentido. Agora era mil vezes pior que António nos seus piores dias. Bebia, injuriava as pessoas que passavam, mal falava com os seus pais, e o seu brilhante futuro, estava irremediavelmente perdido. O que lhe valia era António. Este tomava conta dele, dizia-lhe aquilo que todos pensavam, mas que Nuno só ouviria de António. Tinha-se virado para o conhecimento, lia muito, estava a tentar tirar um curso universitário... O seu tempo era dividido entre os livros e Nuno, não tinha espírito para mais coisas na sua vida dizia, com um sorriso sarcástico.
O acidente acabou por transformar aquela amizade numa perfeita simbiose. Do acidente resultou a cadeira de rodas para um, e a culpa para o outro.
-"Nunca falámos sobre o acidente."
-"Acho que nenhum de nós se gosta de lembrar."
-"Vivemos com o resultado dele todos os dias... deveria ser a coisa da qual mais falaríamos."
A última noite que estiveram juntos, foi equivalente a outro acidente. Tiveram uma briga, Nuno, tinha-se metido com uma tipa... que estava com o namorado ao pé. O namorado e os amigos não se importaram com a cadeira de rodas e tanto António com Nuno apanharam bastante. Nessa mesma noite, enquanto miravam Lisboa no Adamastor, António já sabia que não voltaria a ter aquele par de olhos a partilhar a visão...
-"És incrível... estou farto! Dia após dia... só fazes merda, pá. "
-"Desculpa... já pedi, não já."
-"A desculpa não é uma confissão ao padre, pedes perdão, rezas umas coisas e tens a porta do céu à tua espera outra vez. Estou farto de desculpas, e farto de te tentar mudar. Acaba aqui Nuno... Segue a tua vida."
Enquanto Nuno caminhava de costas para Lisboa, António ia balouçando a sua cadeira... Telefonou aos seus pais que o foram buscar... e nunca mais voltou ao Adamastor.
António sabia que Nuno andava por maus caminhos agora. A vizinhança falava, ele não escondia a sua curiosidade. Mas a notícia da sua morte apanhou-o desprevenido. Tinha sido encontrado num dos edíficios abandonados da baixa, três semanas depois de morrer.
O que antes era partilhado pelos dois, morava agora só dentro de um. Tanto a cadeira como a culpa... E ninguém para partilhar.
António tirou o curso de Engenharia Informática, é um dos melhores naquilo que faz, é uma das maiores vozes a gritar pelos direitos das pessoas na mesma situação que ele, e com outras deficiências. Mostra o que existe de mal numa sociedade que deveria ser para todos e não só dos perfeitos fisicamente. Patrocina uma associação de luta contra a droga entre os jovens... Faz isso por si e por António. É o máximo que pode... e faz.
A quem me inspirou a minha homenagem.
1 comment:
Bem, q história impressionante!Tou a ver q o teu jeito p contar historias n diminuiu em nada.Beijinhos. Rita
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