Thursday, January 03, 2008

Jaipur e Pushkar

De todas cidades onde estive, Jaipur é sem dúvida a mais suja. Para além de toda a confusão normal, ainda temos a acrescentar porcos e um número cada vez maior de camelos. Capital do Rajastão, com 5 milhões de pessoas, tem o maior forte, antiga casa dos marajás. Antes de se tornar um estado da união indiana, o Rajastão existia num regime de clãs, transformados em marajás, onde famílias disputavam a hegemonia pela rotas comerciais que ligavam a Índia à Ásia Central.

Para além do forte, pouco há a dizer de Jaipur, à parte do melhor ponto para ver o pôr do sol. Foi aqui, numa esplanada a ver o sol a cair que me apercebi que os Indianos não tem grande resistência ao álcool. Para amenizar o Harish convidei-o para beber uma cerveja. Passado algumas Kingfisher, percebi que o tipo já se ria com as moscas que passavam ao nosso lado. Foi então que lhe comecei a perguntar pelas lojas e comissões. Como funciona o esquema? O tipo desmanchou-se todo, e fiquei a perceber como tudo na Índia é sobre o negócio. Its all about business, dizia Harish, frase que repetiu mais mil vezes cada vez que um indiano lhe vinha oferecer comissão para ele me levar a uma loja, ou a um homem santo. O acordo que fizemos foi simples. Eu dava-lhe o equivalente a três lojas por dia, e ele livrava-me de tudo o que fosse do género. E assim foi. Apesar de estar sempre a perguntar se eu queria comprar alguma coisa, nunca me tornou a enganar, e todos os seus conselhos foram bons. Never stop in the street...

E de facto, o segredo na Índia é nunca parar quando nos perseguem com ofertas. Armado de sorriso e pernas imparáveis. É a melhor maneira de estar na Índia. E foi assim que seguimos caminho, naquele lusco-fusco da madrugada em que a minha viagem começou a fazer sentido. Talvez por saber como me comportar. Ganhar aquela segurança em mim próprio que me fez saber como me comportar em qualquer situação.

Partimos a caminho de Pushkar. Cidade santa, e um dos maiores centros de peregrinagem da Índia e uma cidade que vive numa luta que assume contornos violentos. Pushkar é também a cidade onde se realiza, pelo mês de Novembro, o maior festival de camelos da Índia. Assim os cameleiros e os homens santos estão em luta constante pelos turistas. Na portagem à entrada da aldeia atacaram logo Harish, falando-lhe em indiano e prometendo-lhe comissão caso ele me levasse aos homens santos. Harish alinhava com os cameleiros, passo o ridículo da expressão. Eles não enganam ninguém. Quando passei no alto do camelo e vi os turistas a receber flores dos homens santos, para de seguida serem extorquidos do dinheiro que tinham, afinal as flores custam rupias, assim como as rezas, as boas sortes a todos os membros da família que são tão maiores quanto a contribuição, percebi que Harish tinha razão.

Em Pushkar comecei a fazer amigos ocidentais. Não vos faz ideia a vontade que tinha de falar com alguém que visse as coisas como eu. Partilhar a inversão de valores que ia sofrendo, partilhar a maneira como a Índia me ia mudando. Queria perceber se estava a ser normal, nesse conceito de normalidade que pensamos tão global, mas que rapidamente fica em dúvida na Índia.

Enquanto passava no camelo, o cameleiro era insultado e ameaçado pelos homens santos. Há expressões que nem na Índia necessitam de tradução. A repulsa perante aquela luta por turistas fez-me sentir mal. É o fruto daquela pobreza que Harish e eu víamos todos os dias, de vidro aberto e ar condicionado desligado porque simplesmente achava injusto poder tê-lo. Algo que nos faz pensar em esvaziar os bolsos, tirar a roupa até ficar mais nú que aquelas pessoas, para apenas chegar ao fim e perceber que nada podemos fazer para mudar a situação. Sentimo-nos pequenos e insignificantes. Não podemos fazer a diferença ali. E não conseguimos ser indiferentes. É a melhor definição que a Índia pode ter, o sítio onde é impossível ser-se indiferente.

O festival é uma feira de camelos. Pelo meio tem concursos como quantas pessoas conseguem ficar em cima de um camelo, atracções circenses, e centenas de famílias que descem do deserto que é partilhado com o Paquistão para fazerem o seu negócio. Sente-se que a mesma feira ocorre anualmente, imutável desde milénios. As pessoas dormem em tendas ou não, no meios dos animais, o meio de transporte é o camelo ou cavalo, e as mulheres urinam subindo a saia e agachando-se discretamente. Lembrei-me do meu avô. Ele percorria centenas de quilómetros de bicicleta para vender os sapatos que fazia na sua pequena oficina. Lembrei-me de todas as histórias sobre luz eléctrica, casa de banho, quartos em comum... Cheguei à conclusão que aquela realidade não está assim tão longe para mim. Que já não bastava ter nascido noutro país para ser igual àquelas pessoas, bastava ter nascido em Portugal trinta anos antes. Apercebi-me que somos todos filhos da experiência e da envolvente às nossas vidas, não somos mais nem menos que a pessoa ao nosso lado, tivemos apenas experiências de vida diferentes. Experiências que muitas vezes não podemos escolher.

O cameleiro perguntava-me de onde era. De Portugal, respondia com este orgulho patriótico que nunca sabemos bem de onde vem. A sua cara, e a sua dificuldade em repetir o nome entendia que nunca tinha ouvido de tal nação. Comecei a fazer o mapa-mundo, com um pauzinho no chão do deserto. Apontava-lhe os continentes, depois França, Espanha, e finalmente Portugal. Pouco fazia sentido pelos seus olhos. Quando lhe perguntei de onde era, sou do deserto. Paquistão ou Índia? Do deserto. Hindu ou muçulmano? Somos mais antigos.

Foi com uma secreta inveja que desisti de lhe incutir esse pedaço de informação. Inveja de ser como ele, livre desta fome de conhecimento que existe no meu mundo, como modo de nos provarmos a nós próprios aos olhos dos outros. Sempre aos olhos dos outros. Enquanto o seu povo fazia o jantar e eu esperava olhando o pôr do sol, percebi que a humanidade é tão diferente pelo o que nos faz felizes. As crianças brincavam com as cabras do rebanho, os homens brincavam com os tachos de arroz por detrás de mim, e riam. Um riso cujo adjectivo para classificar ainda vou demorar para encontrar. Aqui não existe.



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De Agra para Jaipur, no meio da montanha, o templo a Anduman o deus-macaco. As pessoas tomam banho antes de ir ao templo, e este está cheio de macacos por todos os lados. Dar comida aos macacos é considerado bom Karma.



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Jaipur

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Festival de camelos, Pushkar

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O rapaz cameleiro na esquerda

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