Tuesday, January 15, 2008

Haridwar e Srinagar

O circuito turístico na Índia tem três grande pólos. Agra, o Rajastão e Varanasi. Varanasi é a mais conhecida das cidades santas. Não só se cremam os corpos dos mortos, como também é local de peregrinação para os budistas. Penso que já todos vimos fotografias dos eremitas que saem de anos a anos debaixo das suas árvores, com os seus cabelos emaranhados e os seus corpos sujos da falta de um banho. Esses homens santos, que resolveram deixar tudo para trás, família, dinheiro, a vida, também são peregrinos nesta cidade. Mas mas em Delhi informei-me do que era Varanasi. Quando me disseram que era como Agra, turístico, resolvi mudar de plano. O que me interessava era ver a maneira como o povo interagia com o rio sagrado, os cabelos de Shiva, e para isso tinha mais duas cidades bem mais perto de Delhi. Uma é Rishikesh, a outra muito mais discreta, tanto que nem tinha hotel para dormir, era Haridwar. Nem que seja pelo título, pela minha aversão ao circuito turístico, a escolha era óbvia.

Quando olho para trás não deixo de me sentir mal por não estar no meio daquelas fotografias de Varanasi que me habituei a ver nas revistas de viagens pela Índia. Mas lá fez todo o sentido. Tanto mais pela cidade de Haridwar. Quem já visitou a Índia, Marrocos ou um país afim, habitua-se à ideia de estar constantemente a ser chamado para comprar isto ou aquilo. Nunca ouvi tanto “Hello” na minha vida, jurei por nunca mais atender um telefone assim. Em Haridwar, nada nem ninguém me chamava. Eu caminhava nas ruas, e era apenas mais um no meio de milhares de peregrinos. Com o tempo fui percebendo que enquanto as outras duas cidades se iam enchendo de turistas, em Haridwar não havia sequer quem fizesse dinheiro com turistas. Vi apenas um ocidental, daqueles que parece mais indiano que os próprios. No princípio disse-vos que, fora do circuito turístico, o povo indiano é lindo nos seus valores e no seu sorriso. Esta frase nasceu em Haridwar.

A cerimónia é enebriante. Milhares de pessoas juntam-se na berma do Ganges e aprontam-se a arranjar uma folha grande cheia de pétalas. Estas são queimadas, fazendo uma pequena chama que por obra divina não queima a folha. Os arranjos são enviados pelo Ganges abaixo, num espectáculo de nenúfares iluminados. Ao mesmo tempo, esses milhares de pessoas vão gritando e levando os braços ao alto, num uníssono assustador. As pessoas banham-se durante todo o dia. A todas as horas. A corrente, com o balanço ganho nos Himalias, é fortíssima. Existem correntes presas às margens a que todos se seguram enquanto mergulham, indo acima e abaixo na posição vertical, tapando a cabeça apenas por uma fracção de segundo.

Tinha pensado bem se deveria tomar banho ou não. Do ponto de vista pragmático, eu não me banharia no Tejo se a tempertura (estava um frio) fosse aquela. Nem em outro qualquer rio. E afinal, respeitando o pragmatismo, o Ganges significava tanto para mim como o Tejo. O sagrado só estava na cabeça daquelas pessoas. Resisti aos vários convites do Harish, que se ria dizendo que eu era a pessoa mais porca daquela cidade. Dormimos num Hashram, casa de peregrinos. Cada um paga o que quer, e tem-se uma cama, um lavatório e um buraco no chão. Mas estar no meio daquelas pessoas e brincar com as crianças punha o meu estado espírito de tal forma que me sentia no palácio do marajá mais rico. Penso que aprendi aí, que a felicidade pode vir das coisas mais insignificantes.

Tinha chegado a altura de dizer adeus a Harish. Disse-vos logo no início, que bastava 5 minutos com aquele homem e nunca mais seriam a mesma pessoa. E é essa a definição mais elogiosa possível no meu cardápio. De tanta má sorte que teve na vida, nunca terei eu aquele sorriso, mesmo com toda a boa sorte possível.

Só quando cheguei a Portugal é que disse aos meus pais que tinha estado 6 dias em Caxemira. Enquanto lá estava dizia-lhes estar nos Himalias. Apesar de saber bem que apenas me enganava a mim. Após Haridwar tinha a hipótese de ir para Varanasi ou para o sul da Índia, era esse o plano inicial. Até hoje não vos consigo explicar porque fui. Insensato concluímos todos, mas lembro-me de escrever quando cheguei, aqui estou eu, onde apenas os tolos vêm, e tão feliz por o ser. Um nobre muçulmano, quando chegou ao vale de Caxemira exclamou, a haver um paraíso na terra, então só pode ser aqui no vale de Caxemira. Deixo a descrição para as fotografias de Srinagar.

Caxemira é uma zona de guerra. Temos barricadas nas estradas, com sacos de areia e metralhadoras do tamanho de canhões de água por detrás. Em cada intersecção no centro da cidade existem 3 membros do exército indiano que revistam os Kashimirim que passam. O sentimento é misto, por um lado sentimo-nos seguros com tanto exército, por outro não queremos descobrir a razão que leva a tão grande dispositivo. Mas nem sempre foi assim. Durante a ocupação britânica era uma zona nobre de turismo. Os Ingleses fizeram milhares de casas barco, cada uma mais trabalhada que outra, e povoaram o sistema de lagos do vale. O nevoeiro e o frio parecem bem britânicos, e não me admirou nada o interesse Inglês . Pensava eu ser impossível ter mais frio. No presente o investimento Indiano em turismo na zona é elevado. O aeroporto está a ser convertido em internacional, e as infraestruturas de apoio ao turismo são desenvolvidas. Apenas não têm turistas para os experimentar. Em Caxemira existem os independistas apoiados pelo Paquistão, os independistas que não aceitam o apoio de ninguém, os pró-indianos, os que defendem a autonomia... Se juntarmos que Caxemira é nascente dos principais rios da Índia, está tudo montado para haver conflito constante. Lembro-me de falar com os locais e me dizerem que Jesus Cristo tinha lá estado, antes e depois da incursão que mudou a história. Até dizem que está enterrado numa gruta no meio dos Himalias... Hei-de um dia escrever um livro sobre isso.

Fiquei numa casa barco, donde tirei as fotografias mais bonitas que algum dia vou ver. A paz é enebriante, o kingfisher ou o mergulhão vai voando por cima das águas do lago até encontrar a sua presa, mergulhar num ápice e desaparecer durante segundos, que parecem uma eternidade imaginando os seus pulmões. O lago tem cerca de 5 metros de profundidade, a mesma altura que as algas que vão roçando na canoa, o único meio de transporte para as casas barco. Os recolhedores de algas vão apanhando-as e pondo na parte de trás do barco até este deixar a primeira gota. Nos intervalos vão fumando o seu cachimbo de água povoado do sempre constante ópio. Ao longe, ao perto, de todo o lado, numa das cinco horas marcadas por dia, escuta-se as três primeiras frases do Corão, repetidas por um sem número de vozes por detrás do microfone. Sentimo-nos pequenos perante o som da voz do imã e todos os que o seguem.

Tive companhia nos primeiros dias. Do meu povo favorito, em todas as viagens que tenho feito, sempre me dei bem com o povo australiano. Os tipos estão sempre bem e prontos a dizer qualquer coisa que nos põe um sorriso nos lábios. Na viagem pelo rio fomos vendo o mesmo que já tinha visto em Tigre perto de Buenos Aires, a maneira como as pessoas vivem apenas com água à volta. O barco escola, o barco do gás, o do supermercado, como todas as casas têm uma canoa à porta. Como as crianças de Srinagar vivem lado a lado com a opressão vinda de todos as correntes políticas no país, e mesmo assim conseguem jogar cricket em 10 metros quadrados de terreno com, claro, muitos mergulhos.

E foi assim que me preparei para a verdadeira aventura da viagem. Iria passar 3 dias nos Himalias, ia subir a 6000 metros com Kalick, o melhor cozinheiro do mundo.


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Haridwar

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Os cabelos de Shiva que deram origem ao Ganges.

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Os milhares que se banham no Ganges.

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Srinagar.

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Kalick.


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1 comment:

sara said...

Nao me canso de ver. As tuas fotografias estao inacreditaveis. Ainda nao desisti de "ouvi-las" pessoalmente...