Monday, February 04, 2008

Os Himalias e Akshays big day

A subida foi feita a 2 etapas. Primeiro, para me habituar à altitude, ficámos numa aldeia cigana a cerca de 3000 mil metros. Lembro-me de estar a chegar de carro e a minha cabeça já estar a estalar. Na transição de homem para rato tive as dúvidas que qualquer um teria, mas não iria voltar para trás agora. O dia passou-se calmamente a conhecer os arredores e a beber muita água. Na manhã seguinte iria com Kalick e mais dois miúdos da zona até ao lago Gungbal, que segundo Kalick ficava a 6000 metros, no sopé da montanha Harmuck, a montanha mais alta e nunca conquistado de Caxemira, a 7000 metros.

A sensação naquela altitude é que se dermos um salto bem alto ficamos em órbita. Os passos custam menos a dar e a nuvens correm rápido por cima das nossas cabeças. Ao lago fui sozinho com um dos miúdos locais, e lá no topo, enquanto o meu companheiro se refugiava entre as rochas para não apanhar vento gélido, segui sozinho até ao lago. Estranho o sentimento e de onde ele vem. Sentei-me meia hora perguntando-me como cheguei ali. As escolhas que fui fazendo, o caminho que percorri até estar a 6000 metros nos Himalias. Quem eu era, quem sou, quem serei... numa escolha que sabemos nada ter a haver com as nossas decisões mas gostamos pensar que controlamos. Fugir ao conforto de um mundo indeterminista usando um racionalismo determinista que sei falso.

Lá no topo a minha máquina fotográfica congelou. Companheira de tantas viagens resolveu tirar tudo branco. Mas nada me mandava abaixo naquela hora. Estava no topo do meu mundo.

Passei mais dois dias em Srinagar, esperando a névoa passar até aviões puderem começar a pousar. Naqueles dias apercebi-me do fervor religioso dos habitantes de Srinagar. Uma manhã disseram-me que se estava a rezar nas mesquitas para que chovesse. Disseram que se não chovesse as pessoas iam deixar de ter água para beber, doenças iam espalhar-se e tudo iria ser pior. Uma das coisas que aprendi na vida foi a detectar discursos saídos de boca mas não da cabeça, discursos que apanhamos de ouvido e apenas repetimos com a mesma gravidade das pessoas que nos incutiram. Perguntei-lhes o que dizia a meteo. A resposta automática dizia que choveria se Deus assim quisesse. Fiquei com pena de uma das religiões mais bonitas se portar exactamente como todas as outras. É fácil ver que vai chover dentro de dois dias nas previsões meteorológicas, incutir a catástrofe de não a ter nas pessoas que vão ao serviço religioso, e no dia seguinte rezar pela queda da preciosa. Quando dizia a Kalick que poderiamos ouvir no rádio a previsão para o tempo, ele dizia-me que não precisava de nada disso, Deus tomava conta dele, e o que Deus quisesse estaria sempre bem para Kalick. Foi a paz na sua cara que me fez calar. Na verdade não me sentia com argumentos suficientes para quebrar uma forma de vida de séculos. Debaixo das gotas de chuva nessa tarde senti-me próximo de Kalick, na sua maneira simples de ver o mundo e de ser feliz com o amor do seu Deus que faz chover, não ligando a nada do que diz a meteorologia.

É engraçado ver que tanto no primeiro como no terceiro mundo, a maior repressão intelectual é feita através da informação, sua manipulação e acesso. Não é de estranhar que sejam sempre os media os primeiros a sofrer num estado autocrático, e que sejam esses mesmos media que se aproveitam do poder que detêm sobre a opinião pública, nos países de primeiro mundo. Lembrei-me de uma discussão tida em Paris, onde eu advogava que a real democratização dos poderes legislativo, judicial e executivo era o próxima passo na Democracia. Alguém dizia que só acreditava quando o conhecimento seguisse o mesmo caminho. Deveríamos votar nos jornalistas, deixar os políticos ter uma carreira normal. A democratização e uniformização de conhecimento, é essa a resposta aos problemas do mundo.

Segui para Mumbay. Ia encontrar Anocas, companheira da América do Sul, e Bia que andava pela Ásia há 3 meses. Dali seguiríamos para Pune onde o nosso amigo Akshay se ia casar. Entretanto conheci Orwan, meu vizinho no avião e com quem tive as conversas mais interessantes em toda a Índia. Falámos de amores passados de cada um, dos objectivos que ele tem na vida, dos problemas de Caxemira. Passámos uma noite a caminhar na praia de Bombaim. Os hindus tinham medo dele, por se notar tão bem que era de Caxemira e isso dava-me espaço para respirar nos pontos em que somos mais solicitados. De madrugada voltámos ao hotel, estava o último carro de bombeiros a ir embora. O meu quarto pegou fogo, por um curto circuito no ar condicionado, e a minha mala estava preta e chamuscada. Soube no dia seguinte que todo o hotel tinha sido evacuado por causa do incêndio. É incrível como uma coisa destas consegue mandar uma pessoa abaixo. Enquanto verificava o estado da roupa sentia o ânimo a vir abaixo e só pensava em dormir e esperar que de manhã tivesse tudo bem.

A densidade populacional de Mumbay é das mais altas do mundo, e não fiquei a gostar mais das cidades indianas por causa de Mumbay. Foi engraçado assistir à habituação da Anocas ao país, e imaginar-me a mim no início, tudo tão novo. A zona de Colaba é a mais gira para ficar e se ver em Mumbay, mas é a vida da cidade que mais chama a atenção. A praia está sempre cheia de gente e pequenas feiras com carróceis espalham-se ao longo do areal. Massajadores de cabeça andam sempre à caça de cabeças para usarem as suas mãos divinas, crianças brincam por todo o lado e as bolas de cricket estão sempre no campo de visão. As crianças têm bancos geridos por crianças onde elas podem depositar o dinheiro que vão ganhando na rua. Mumbay é tão frenética como genuína.


Em Pune, a terra da noiva, passámos 2 dias, outros dois em Nagpur, a terra do Akshay. O casamento tem mil tradições, pequenas velinhas e ditos que vão decorrendo ao longo dos 4 dias. Primeiro ele vai buscar a noiva à sua terra, apresenta a sua família e os seus amigos. Depois leva-a juntamente com toda a sua comitiva para a sua terra, o que neste caso representava 600 km de distância. No dia seguinte chega a família dela ver se está tudo bem.



Gostava de concluir ao jeito dos grandes mestres literários que nos fomos habituando a ler. Mas na verdade é difícil arranjar palavras para concluir algo que não irá acabar na nossa cabeça. A Índia e o que aprendi sobre mim próprio e sobre como vive maior parte da população do mundo vai sempre estar presente nas minhas acções, nas minhas palavras. Já viajei um pouco pelo mundo, mas nunca aprendi tanto.

A Índia é a maior democracia do mundo. E funciona como tal, com todos os seus problemas e falhas. Entre a modernidade e a tradição, sem que ninguém adivinhasse, consegue manter-se um equilíbrio saudável e que dá mostra a algo tão diferente do que um ocidental está habituado, que valeria sempre a pena visitar, nem que fosse por cinco minutos.

Crescer sem viajar e conhecer outros mundos é como ficar dentro da barriga da nossa mãe toda a vida. Viajar e a humanidade é o melhor que o planeta Terra nos oferece. Não percam esta oportunidade.


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A aldeia cigana.

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O acampamento.

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A subida.

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Ao fundo o pico Harmurk a 7000 metros de altitude.

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Orwan e a sua namorada.

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O casamento do Akshay - Fotos cortesia da Bia.

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O leito nupcial.

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