Sunday, December 04, 2005

Sócrates e o chico-espertismo Português



O quadro que vêm em cima chama-se "A morte de Sócrates", foi feito por Jacques Louis-David em 1787, e representa os últimos momentos da vida do filósofo de Atenas. Platão, um dos discípulos de Sócrates, fala mais tarde na sua morte. Platão torna Sócrates uma das personagens principais nos seus diálogos em várias obras. A que me interessa trazer aqui passa-se com Críton, num texto do mesmo nome, um dos amigos de Sócrates. Mas antes o contexto.

Sócrates, sempre se manteve fora da política. Os interesses vingentes na altura, não tinham muito a haver com a sua maneira de pensar. Igualdade, liberdade pelo pensamento, não tinham muito a haver com a filosofia egoísta, de escravizar o próximo que era praticada pelos líderes da altura. Na sua escola, Sócrates ensinava estas mesmas coisas aos seus discípulos. A sua irónica crítica e as suas opiniões levaram a que lhe fosse instaurado um processo por desviar as mentes dos jovens dos bons caminhos. Sócrates foi condenado à morte, usando como pretexto os seus ensinamentos à juventude de Atenas.

No diálogo escrito por Platão, Críton, seu discípulo endinheirado, diz a Sócrates, já encarcerado, que está tudo preparado para a sua fuga. Sócrates diz que não fugirá, que ficará para ser executado. Críton fala-lhe da injustiça que está a ser feita, e que é errado ele morrer por algo que não fez.

Somos agora o olho de Platão dentro da cabeça de Sócrates. Este está perante um dilema. Por um lado tem uma maioria, os amigos e a opinião pública, que diz que o que se está a passar é uma injustiça, pelo outro tem os especialistas das leis, que dizem que ele é culpado de um crime e que deve morrer por isso. Este é um confronto na sua mente. Sempre viveu pelas leis da sua cidade, sempre as defendeu, a sua existência e acção, porquê é que deve ser diferente? Por se passar com ele? Surge aqui uma confrontação entre a opinião de uma maioria e de um especialista. Sócrates diz a Críton que não fugirá, que irá cumprir com as leis, leis pelas quais sempre regiu a sua vida... As leis da sua cidade e a opinião do especialista.

No quadro vê-se o lamento dos amigos, que não aceitam a decisão de Sócrates, enquanto este devolve a cicuta que irá executar a sentença.



Na minha cabeça, o chico-espertismo é o fugir à leis, do ponto de vista social e judicial para proveito próprio. O passar à frente de uma fila, não esperando como todos os outros, ou não pagando os impostos, falhando em contribuir para o funcionamento do seu país, como todos os outros fazem. Existem chicos-espertos em todos os locais do mundo, nos poucos países em que estive, sempre ouvi histórias de fugas ao fisco, vi comportamento social de chico-esperto... embora sempre menos que em Portugal. Em especial... quanto mais se anda para o Norte na Europa, melhor comportamento social se vê.

A diferença entre Portugal e os outros países? Para mim é clara. Em Portugal, o chico-espertismo é valorizado. Isto leva a que, para além do bem estar económico e individual, as pessoas o façam para se promoverem socialmente. Assim, a informação da sua chico-espertice é anunciada a meio-mundo. Com a informação e a imagem de sucesso do chico-esperto, o normal Português não vai querer mais nada se não imitá-lo, criando um ciclo.

Um exemplo claro foi o que se passou nas autárquicas. Quatro chicos-espertos acham-se no direito de concorrer a uma eleição para uma câmara municipal. E três ganham... com grande vantagem. Não é um... podia ser um caso particular, um heroí da terra... Mas não... e isto nacionaliza o problema, quer se queira ou não. Não nos podemos demarcar do que aconteceu nesses três concelhos.

A essência do chico-espertismo é querer-se o melhor para si próprio. Dito assim, não parece nada de mau. O problema é quando se passa por cima das regras de funcionamento da sociedade, judiciais, sociais e lealdade para com o próximo. É um egoísmo galopante que faz esquecer que as regras existem para serem cumpridas. Um especialista no funcionamento da sociedade, ou o conhecimento do povo (formar uma fila p.e.), fazem-nas porque acham que é o mais justo para todos.


O chico-espertismo vem de falta de educação cívica. Por mais importante que a escola seja na vida de uma pessoa, não é aqui que se deve aprender o largo espectro de regras de sociedade. Algumas sim, mas as principais aprendem-se em casa. Viver em sociedade foi o que nos fez evoluir até o ser que somos hoje. Mas não nascemos ensinados. Cabe aos educadores principais de cada um, preparar uma criança, e mais tarde o adulto, para entrar nessa sociedade, cumprindo as suas regras e contribuindo para o seu bom funcionamento. Para resolver problema, dever-se-ia atacar os chicos-espertos activos, mostrando-lhes o erro que estão a cometer. Gasta-se tanto dinheiro público em campanhas publicitárias pelo país, porque não actuar sobre o sentido cívico do povão. Mostrar que é errado ser chico-esperto.

Tem que se mostrar que é mais "bem visto" (sempre tão importante) respeitar as pessoas e as regras, do que promover o seu bem-estar pelo não-cumprimento dessas mesmas regras. Inverter a tendência existente de valorizar esse comportamento, mostrando o que realmente é, má educação.

Eu não digo para sermos como Sócrates, deve-se ter sempre uma mente crítica, mas que o não-cumprimento das leis venha da sua injustiça intrínseca e não do nosso egoísmo.




Além disso, na realidade Sócrates procurava imortalizar a sua alma, como se vê noutros textos de Platão (Fédon), e pela última frase: "Devemos um galo a Esculápio". É uma referência ao Deus da medicina por ter livrado Sócrates da vida e lhe dar a hipótese.

2 comments:

vicks said...

Concordo.

Felizmente também vivo fora de Portugal. Por vezes só a distância nos permite ver coisas que normalmente não veriamos. Uma delas é a noção de comportamento cívico.

Exemplo prático. Estava acabadinho de chegar à França e orgulhava-me de já ter percebido que podia andar de transportes públicos sem pagar porque ninguém controlava (chico-espertismo, confesso). Um dia vi um bêbado crónico que mal andava. Pois este senhor, retira do bolso a moedita de euro e toca a comprar o bilhete. Está certo que demorou uns minutos para picar o bilhete mas lá conseguiu. Aí senti-me mal.
Outra, estava a gabar-me do meu chico-espertismo com um colega alemão. Perguntei-lhe se costumava não pagar o bilhete. Ele disse-me simplesmente com a cara mais séria possivel: - Podia fazê-lo mas aí não estava a ser um bom cidadão. Eu ri-me pensando que estava a gozar comigo (lá está, ainda estava a pensar como um português típico) mas a sua expressão permaneceu inalteravel. Ele estava mesmo a falar a sério. Aprendi uma grande lição nesse dia.

Fala-se em ensinar tantas coisas nas escolas, como educação sexual e assim, porque não ensinar comportamento civico, mas a sério.

Quando é que ter um comportamento civico em Portugal deixa de ser típico de um tótó? Não deveriamos ser todos assim? Afinal, somos europeus ou não?

Victor Costa

São Domingos said...

Voltando um pouco atrás: Sócrates também foi acusado de práticas homossexuais com menores... Quanto ao chico-espertismo, é sem dúvida uma grave doença da nossa sociedade.